Novos estudos em genética e biologia sintética tornaram possível a criação de uma levedura com mais de 50% de ADN sintético de engenharia humana
Daniel Pellicer Roig
J. CRAIG VENTER INSTITUTE
Colónias bacterianas azuis que mostram que Synthia, o microrganismo Mycoplasma mycoides criado por computador, aceitou o ADN.
Antes de 2010, Synthia não era nada, não existia. Agora, porém, apresentava as características do que conhecemos como "vivo". A sua existência não foi o resultado da evolução de outro microrganismo, mas sim do esforço de mais de vinte investigadores e de milhões de dólares investidos numa série de projectos genéticos. O Mycoplasma laboratorium, como foi chamado o organismo, é uma estirpe de bactérias sem parede celular criada artificialmente.
A sua produção foi uma odisseia que levou uma equipa de alguns dos melhores geneticistas do mundo a inventar novas técnicas para realizar as experiências. A ideia geral do projecto era estudar o número mínimo de genes necessários para criar um organismo vivo, ou seja, um organismo que pudesse alimentar-se, reproduzir-se e interagir com o ambiente. Assim, começaram com os organismos com o genoma mais pequeno conhecido na altura e estudaram os genes que não eram essenciais para os manter vivos.
Um dos organismos, o Mycoplasma genitalium, parecia ser o candidato ideal, uma vez que é capaz de viver com pouco mais de 500 genes no seu genoma de 580.070 pares de bases – vulgarmente conhecidos como "letras" de ADN.
Como referência, os humanos têm cerca de 20.000 genes codificadores de proteínas (os últimos números indicam 63.494 no total, contando com os genes não codificadores) e mais de 6 mil milhões de pares de bases.
A CRIAÇÃO DA VIDA SINTÉTICA
A M. genitalium tem o nome de uma bactéria que foi isolada pela primeira vez em 1981 a partir de amostras do trato urogenital. A bactéria é capaz de infectar o trato urinário e genital de homens e mulheres e é geralmente transmitida através do contacto sexual. Actualmente, o aumento do número de casos é motivo de grande preocupação, uma vez que provoca dores, problemas ao urinar, hemorragias e pode mesmo levar a partos prematuros. Mas num espaço confinado como o laboratório havia outros problemas com este microrganismo. O M. genitalium cresce muito lentamente, e o ritmo parcimonioso desta bactéria chocava de frente com a rapidez com que as experiências têm de ser realizadas. Decidiram então substituí-la pela Mycoplasma mycoides, com um genoma quase duas vezes maior.
Para materializar o genoma completo do organismo, os cientistas começaram a montar fragmentos de ADN de 5.000 a 7.000 pares de bases, como se fossem peças entrelaçadas. Durante o processo, aproveitaram para introduzir certas "marcas de água" para indicar que o genoma era artificial, bem como inscrições no código genético. Depois de terem o genoma completo, tentaram inseri-lo no genoma de outro membro da família Mycoplasma, o M. capricolum, cujo ADN tinha sido completamente removido. Foram necessárias várias tentativas, as células estavam relutantes em aceitar este ADN estranho, mas no final observaram um ponto azul numa das colónias de bactérias que significava que uma nova vida tinha começado. Por outras palavras, conseguiram transformar esta célula na primeira bactéria viva que tinha sido concebida num computador.
Alguns geneticistas de renome, como George Church, de Harvard, afirmaram que esse organismo não poderia ser chamado de sintético, pois era uma reconstrução de outro microorganismo. No entanto, após este primeiro teste, necessário para a criação e aperfeiçoamento da tecnologia, em 2016 apresentaram uma versão com apenas 473 genes, a que chamaram JCVI-syn3.0. Este microorganismo tem um genoma mais pequeno do que qualquer célula com replicação independente na natureza e é reconhecido como a primeira bactéria totalmente sintética.
A FAMÍLIA SINTÉTICA CRESCE
Embora a JCVI-syn3.0 seja a primeira bactéria sintética, não é o primeiro organismo artificial. Treze anos antes, em 2003, o prémio Nobel Hamilton O. Smith e o investigador Clyde A. Hutchison sintetizaram o genoma de um vírus bacteriófago – que ataca bactérias –chamado ΦX174. No entanto, este organismo tem apenas 5.386 pares de bases, 100 vezes menos do que a JCI-syn3.0, e só se pode reproduzir infectando bactérias, pelo que o salto qualitativo é notável.
BERNAL, R.A., HAFENSTEIN, S., ESMERALDA, R., FANE, B.A., ROSSMANN, M.G
Reconstrução da estrutura do capsídeo do phiX174
Desde então, os avanços nas ferramentas de edição de genes tornaram possível efectuar alterações mais precisas no ADN e modificar à vontade as características das células. No entanto, há grupos que se dedicam a tentar conceber microorganismos a partir do zero. Para estes grupos de investigação, um genoma totalmente sintético e concebido de forma racional promete oportunidades para um controlo sem precedentes da função celular. Com esses organismos, os compostos de interesse industrial poderiam, portanto, ser produzidos em bioreactores de uma forma muito mais eficiente do que é actualmente o caso.
A concepção do genoma de um organismo é ainda hoje extraordinariamente complexa. Em 2019, cientistas da ETH Zurich tentou imitar e melhorar os resultados obtidos com o JCVI-syn3.0, modificando por computador todo o genoma de um organismo chamado Caulobacter crescentus, uma bactéria de água doce com 6.290 genes e 785.701 pares de bases. Depois de substituir 133.313 pares de bases, o resultado foi uma nova bactéria chamada Caulobacter ethensis-2.0 com apenas 799 genes, teoricamente viável. Infelizmente, até à data, ainda não foi possível introduzi-la com sucesso num microorganismo.
MAIS UM SALTO EVOLUTIVO
Por estas razões, nove artigos publicados na revista Cell Genomics causaram grande agitação na comunidade científica. Após 15 anos de intenso trabalho, centros de investigação do Reino Unido, EUA, China, Singapura, França e Austrália recriaram sinteticamente os 16 cromossomas que constituem o genoma da conhecida levedura Saccharomyces cerevisiae. Além disso, conseguiram introduzir 7,5 destes cromossomas sintéticos de novo na levedura. Como o ADN não está distribuído uniformemente pelos cromossomas, mais de 50% do genoma da levedura resultante é artificial. Esta é a primeira vez que uma percentagem tão elevada de uma célula eucariótica, que é muito mais complexa do que qualquer bactéria, foi modificada com sucesso.
CELL/ZHAO ET AL.
Imagem de microscopia electrónica de varrimento da estirpe de levedura que tem ~31% de ADN sintético e apresenta uma morfologia e um comportamento de gemação normais.
A utilização da S. cerevisiae não é uma questão de acaso, pois há milhares de anos que o homem utiliza esta levedura para a produção de pão e de bebidas fermentadas, bem como de outros compostos químicos. Compreender e aprender a controlar todas as características do seu genoma a este nível pode ajudar a desenvolver novos produtos alimentares, químicos e farmacológicos.
LEVEDURA 2.0
O nome desta nova levedura é Sc2.0 e tem uma série de características muito interessantes que nunca foram vistas antes em nenhum organismo. Entre estas características, os investigadores criaram um cromossoma especial. Este contém todos os genes que codificam o ARN de transferência, uma molécula necessária para a produção de proteínas na célula. Normalmente, estes genes estão espalhados por todos os cromossomas, mas os investigadores acreditam que o facto de os agruparem todos no mesmo cromossoma pode aumentar a eficiência da levedura.
Além disso, conseguiram introduzir um sistema no genoma chamado SCRaMbLE, que permite que os genes se misturem e se reorganizem. Desta forma, é possível obter diferentes populações de leveduras e criar uma maior diversidade de forma controlada.
Para inserir os cromossomas artificiais na levedura, começaram por alterar apenas um dos cromossomas. Ou seja, criaram 16 estirpes de levedura diferentes, cada uma com 15 cromossomas naturais e um cromossoma sintético, diferente em cada estirpe. Depois de fazerem uma série de ajustes e verificarem que funcionavam correctamente, deixaram-nas reproduzir-se e escolheram a levedura que tinha mais cromossomas sintéticos. Desta forma, obtiveram leveduras com um número crescente de cromossomas sintéticos no seu interior. Para aumentar a eficácia do método, criaram um sistema chamado "substituição de cromossomas" com o qual conseguiram transferir 7,5 cromossomas para uma das leveduras.
O próximo desafio é acabar de incluir o resto dos cromossomas sintéticos na levedura e criar assim o primeiro organismo eucariótico 100% sintético. Embora esse objectivo seja o fim do projecto, os investigadores dizem que é mais um começo. Com um genoma totalmente sintético e modificável, a levedura pode ser utilizada para produzir praticamente qualquer molécula de interesse, desde produtos farmacêuticos a bioplásticos e biocombustíveis.
Saiba Mais.Matéria extraída: https://www.nationalgeographic.pt/ciencia/cientistas-criam-vida-sintetica-bacterias-artificiais-podem-ser-futuro-biotecnologia_4441
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