Danielle Pedrolli foi a primeira pessoa no país a ocupar uma posição na academia para trabalhar especificamente na nova área. Biologia sintética começou a deslanchar a partir de 2010, e envolve modificação de organismos com materiais genéticos artificiais para encontrar soluções para alimentos, biocombustíveis, medicamentos e produtos para indústrias.
“Biologia sintética? Mas o que é isso exatamente?” A microbiologista Danielle Pedrolli se acostumou a ouvir esta pergunta de seus colegas quando chegou à Unesp, em 2014. Imersa em uma área nova, com pouca divulgação no Brasil, nem sempre conseguia se fazer entender rapidamente. Mas aprendeu a resumir seu trabalho do modo mais simples que podia: seu papel era alterar o DNA das células para que elas desenvolvessem um comportamento diferente.
Para que a frase não soasse demasiado vaga, complementava com um exemplo fácil, o da insulina artificial. Digamos que, no seu laboratório, houvesse uma cultura de bactérias comuns, como a Escherichia coli. Ao inserir o gene da insulina humana no DNA dessas bactérias, elas passariam, depois de um processo orgânico, a produzir moléculas da proteína insulínica. As bactérias comuns adquiririam, assim, uma nova função e ajudariam, de forma mais acessível e eficiente, no tratamento de diabetes mellitus. A explicação, ainda que simplificada, costumava funcionar.
Dez anos depois, Danielle pode apresentar muitos outros exemplos de feitos da biologia sintética. Ao mesmo tempo, seu status de “ponto fora da curva” acadêmico foi transformado pela chegada de outros colegas, que formam uma comunidade ainda pequena, porém em expansão. E devido ao seu pioneirismo na área, que inclui o fato de ter ocupado, na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, o primeiro cargo criado no Brasil voltado especificamente para biologia sintética, ela desempenhou um papel importante na organização do I Congresso Brasileiro de Biologia Sintética, o maior encontro de pesquisadores da área no país, que aconteceu em agosto, na capital paulista.
O evento marcou o lançamento da Rede Brasileira de Biologia Sintética, organização que visa fortalecer as pesquisas da área no cenário nacional. “A ideia é conectar uma comunidade de pesquisadores que discutam os rumos das pesquisas daqui e de fora”, diz Danielle, uma das líderes da agremiação. “Idealizamos o grupo em outubro do ano passado e já contamos com participantes de quatro regiões do Brasil — Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul — de várias universidades. Queremos expandir para incluir o máximo de pesquisadores brasileiros.”
Nessa primeira etapa, os resultados superaram as expectativas de Danielle. As inscrições de participantes de graduação no congresso esgotaram-se em poucas horas; já as vagas para pós-graduandos, profissionais da indústria, professores e pesquisadores doutores foram ocupadas em menos de três dias. No total, foram 100 participantes, com lista de espera e nenhuma vaga ociosa. Além de palestras de especialistas renomados, o congresso contou com apresentações orais de 7 trabalhos de destaque na área e outros 30 projetos inovadores divulgados em pôsteres.
Uma ciência jovem
A biologia sintética é uma área muito jovem: seu marco inicial é o ano de 2000, quando dois artigos detalharam a criação de circuitos genéticos em uma bactéria e provaram, sem ressalvas, que era possível criar um comportamento artificial com uma matéria-prima natural. Porém, o estudo mais conhecido, que abriu horizontes inéditos de pesquisa, viria em 2010. Neste ano, o cientista John Craig Venter apresentou o primeiro organismo artificial criado em laboratório por meio da biologia sintética. Em resumo, sua equipe elaborou um cromossomo sintético da bactéria M. mycoides e o transplantou para células de outra bactéria, a M. capricolum. No fim, as células receptoras passaram a funcionar como M. mycoides, substituindo o DNA original — sim, a segunda bactéria passou a se comportar exatamente como a primeira.
Com boa divulgação midiática nos Estados Unidos, o estudo chamou a atenção de diversas empresas, animadas com as possíveis aplicações da tecnologia. Ao apresentar a pesquisa, Venter ressaltou que, dali para a frente, seria possível desenhar microrganismos capazes de, por exemplo, produzir vacinas, medicamentos e biocombustíveis.
A previsão se provou verdadeira. No laboratório de Danielle, na Unesp, os experimentos de biologia sintética com bactérias são feitos, também, para suprir algumas demandas comerciais. Exemplos não faltam. Recentemente, Danielle e sua equipe têm trabalhado com três grupos: a produção de vitaminas; a criação de pigmentos que podem ser usados tanto na indústria têxtil quanto na cosmética e alimentícia; e a geração de biossurfactantes, que podem se tornar substitutos dos detergentes químicos, entre outras funcionalidades. Outro projeto em desenvolvimento se dá com enzimas terapêuticas: segundo Danielle, sua equipe trabalha com a asparaginase, enzima usada no tratamento da leucemia.
O processo até chegar ao produto final, no entanto, é longo. “As células não são fábricas químicas, são fábricas biológicas. Isso significa que elas precisam ter uma economia que gere o balanço correto entre crescer e produzir”, explica. “Parte do nosso trabalho é isso: criar esse balanço correto para que as células consigam crescer e produzir de forma viável.”
Um dos estudos recentes da equipe de pesquisadores da Unesp foi publicado no International Journal of Molecular Sciences em 2022. Nele, os cientistas relataram a criação de um dispositivo baseado em quorum sensing, um processo em que bactérias se comunicam através de sinais químicos para coordenar ações em grupo, com a finalidade de controlar automaticamente a ativação e desativação de genes em Bacillus subtilis. Com essa técnica, os pesquisadores conseguiram aumentar a produção de vitamina B2 em uma cepa de bactérias. Essa tecnologia permitiria regular vários genes ao mesmo tempo, tornando-se uma ferramenta útil para aprimorar processos de engenharia metabólica em que é preciso ajustar a produção de substância dentro das células.
Outro estudo de Danielle e sua equipe, publicado em 2021 no periódico Metabolic Engineering, relata o desenvolvimento de uma nova ferramenta de RNA sintético chamada rtRNA, que ajuda a aumentar a produção de substâncias em bactérias. Essa ferramenta atua “enganando” sensores naturais nas bactérias, chamados ribosswitches, para que eles mantenham certos genes ativos, mesmo quando normalmente seriam desativados. A técnica, segundo a conclusão do estudo, se mostrou eficiente, fácil de aplicar e pode ser usada em larga escala para melhorar a produção de compostos importantes em indústrias.
Embora os avanços da biologia sintética sejam animadores, não há tantas indústrias brasileiras que estejam atentas às pesquisas em andamento nas universidades. O interesse do setor privado, de acordo com Danielle, ainda é baixo. “Seria preciso que o setor privado investisse fortemente na biologia sintética e houvesse uma colaboração intensa com as universidades, a exemplo do que acontece nos países que lideram os estudos da disciplina”, diz.
Outra dificuldade é a questão dos insumos. Os experimentos de biologia sintética exigem materiais e equipamentos importados, condição que eleva os custos das pesquisas. A necessidade de importar materiais como o DNA sintético dos Estados Unidos, por exemplo, também implica em um tempo de espera maior. Um pesquisador brasileiro pode esperar até três semanas para receber um material e, caso este não funcione, mais três para receber outro. Um atraso de quase dois meses.
“Hoje, se você tem uma ideia inovadora, você precisa executá-la muito rápido, porque a chance de um outro grupo ter essa ideia e terminar na sua frente é altíssima”, afirma Danielle. “Por isso seria interessante se a gente começasse a produzir os insumos localmente.”
O futuro é integrado
Se a biologia sintética é uma ciência jovem, seus adeptos, em sua maioria, também são. Um dos motivos para isso é a competição internacional iGEM (International Genetically Engineered Machine), criada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 2004 e tida como um dos principais meios de divulgação da área. O mote da iniciativa é muito apelativo aos estudantes: incentiva os alunos a terem ideias de inovação radical que nunca passariam no crivo de um projeto de pesquisa.
“É um projeto que permite que os alunos desenvolvam trabalhos inovadores e se conectem com a comunidade de uma forma democrática”, diz Danielle, que participou com os alunos da Unesp até 2021. “Os patrocinadores fornecem material genético gratuitamente, nivelando as condições para que todos os times avancem em seus trabalhos.”
As participações no iGEM conectaram diversos clubes independentes de biologia sintética no Brasil. Estes, por sua vez, passaram a se comunicar com os professores das universidades brasileiras. Aos poucos, os departamentos de biologia sintética foram surgindo nos principais centros de pesquisa. “Por ter tantos jovens atuando nela, a biologia sintética não traz os medos e os receios da ciência tradicional”, diz Cibele Zolnier, de 26 anos, uma das fundadoras da Associação Brasileira de Biologia Sintética, a SynBioBR, que também ajudou na organização e divulgação do congresso. “Até os professores possuem esse espírito.”
De acordo com Cibele, que se formou em Engenharia Bioquímica há apenas dois anos, o congresso e a rede traduzem não só a força desse espírito inovador, mas também uma vontade genuína de integração com outros pesquisadores do mesmo perfil espalhados dentro e fora do Brasil. “Somos líderes na América Latina, com enorme potencial biotecnológico e uma das políticas de biossegurança mais avançadas do mundo. Temos muito para mostrar no cenário internacional”, diz.
Cibele e Daniele concordam que a biologia sintética será essencial para enfrentar os desafios futuros do planeta. E, como as duas mostram, o caminho para isso, no Brasil e no mundo, é fomentando uma comunidade.
Imagem acima: Deposit Photos.
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